O CAMPÔNIO E O PASSAREDO (1)
Ele amanhara (2) o campo com amor. Madrigava mais que o sol; a lâmina polida da sua enxada, repolia-se muitas vezes na leiva (3) antes de refletir os raios da alvorada. E não muito para a noite em que o luar debruxava , (4) sobre os torrões desfeitos, a figura do lavrador, tosca e rude como êle mesmo.
Terra assim regadas, com tão abundante suor, não deviam ser estéreis e não o eram; muito rica seara cobriu a gleba (5) reconhecida.
As espigas sazonadas (6) vergavam já ao doce peso dos nutridos grãos. Mas os pássaros desciam, às nuvens, lá das profundezas dos céus e dos remotos horizontes. O lavrador declarou-lhes guerra de extermínio e repetia aos seus campônio: “Morte, morte a esses salteadores que devoram a messe, (7) aves daninhas, porque roubais o fruto dos meus labores? Delito cruel que praticais entre gorgeio, como gargalhando, escarcenendo da vítima que deixareis na miséria.
Criaturas sem alma, sem consciência, cáiam sobre vós as minhas iras e o chumbo dos meus coloronos.”
O bando cada vez mais se dizimava aos golpes da vingança do lavrador. Laços por todo o campo, armas de fogo a vomitar a morte a cada instante.
Não houve trégua, nem clemência... No lapso de poucos dias não havia mais um pássaro em toda a vastíssima seara. O Colmo (1) flexível do trigo não mais a balançar ao peso do passaredo; a brisa; a triste brisa não mais mesclava (2) as notas festivas dos alígeros cantores ao aflar (3) das fôlhas do trigal.
Salvou-se um só, apenas um representante dos bandos já extintos... Conseguira fugir um belo pássaro à guerra (3) impiedosa.
E lá no meio da floresta espessa, aflito, alaneado de saudade, o supérstite cantor assim clamava: “Um dia éramos livres; todo êste canto, sem limite algum, herdamos dos nossos antepassados. Uma horda de bárbaros sem coração, começou de (5) apavorar a tranqüilidade do nosso reino. Deitaram por terra a secular floresta, onde em cada árvore havia uma recordação e uma história dos nossos avós. Os ninhos que havíamos construído com amor, êles os destruíram por divertimento, sorrindo cruelmente ao pipilar dos pequeninos e aos soluções dos pais transidos de dor. Nada respeitaram: justiça, propriedade, comiseração até o último delito. Foragidos, nós pedimos hospitalidade na floresta distante, que tinha abrigo, mas minguado pão. Muitos não resistiram, e não puderam (6) esperar que as novas terras lhe fornecessem alimento bastante. Agora é que esses campos que são nossos, muito nossos, exclusivamente nossos, começavam a oferecer-nos os seus frutos.
Mas os invasores haviam jurado extinguir nossa raça... A hecatombe (7) não teve limites: fiquei apenas eu para clamar a desdita do meu povo. (pp.7-8)

(1) Passaredo: coletivo, bando de pásssaros.
(2) Amanhar o campo: limpá-lo das más ervas, cultivá-lo.
(3) Leiva: sulco aberto pelo arado.
(4) Debuxava: delineava, desenhava.
(5) Gleba: sinônimo de leiva; terra.
(6) Sazonadas: amadurecidas.
(7) Messe: ceifa, seara em ponto de ceifar.

(1) Colmo: diz-se do caule das plantas gamíneas.
(2) Mesclava: misturava;
(3) Aflar: soprar, bafejar;
(4) Fugir `guerra, ou da guerra.
(5) O verbo começar rege preposição a ou de.
(6) As formas do perfeito do verbo poder, e dos tempos que dele derivam, devem grafar-se com u: pudera e não poudera.
(7) Hecatombe: morticínio. Palavra de origem grega que significa: sacrifício de cem bois.

O SINEIRO DA ALDEIA
A história do sineiro é muito comprida, porisso, não digo senão que ele foi, como os outros homens, um mortal que só apreciou as cousas, quando se tinham já escoado.
Por mais de quarenta anos, ele tinha exercido escrupulosamente o mister de sineiro em sua aldeia natal. Era ele o homem que chamava os fiéis campônias para as funções religiosas. Falava cousas íntimas aos seus conterrâneos pela boca do sino. Sabia dar tal expressão aos dobres e repiques, tinha variações tão minuciosas, fazia tais matizes de tom, ritmo, fôrça e conservava tão fielmente as regras e convenções tradicionais que o sino em suas mãos se havia tornado a alma daquele povo. O dia de Natal era um dia de glória para o sineiro. Ele se tornava um artista. Com que gosto não esperava a hora matematicamente determinada para tanger o sacro bronze! E que ingênua vaidade não sorria em seus olhos, quando os estendia pelos vales e devesas enluaradas e via o movimento que ele despertava em derredor, povoando os trilhos e atalhos de tanta gente... Não sei o que sucedeu um dia. O velho sineiro não quis mais viver naquela aldeia. Retirou-se para a Capital. Como lhe foi duro aí o grangeio do pão! Esteve em mil tentativas malogradas, (1) em que se deteriorou (2) a saúde, a paz e o modesto pecúlio (3) que juntara. A felicidade, que as grandes cidades prometem aos inexperientes moradores do campo, também para o infeliz sineiro foi uma formidável mentira. A grandeza coletiva, o conforto público, a riqueza dos outros, tudo isso fascina; mas nada aproveitam ao ambicioso os bens que não são dêle. O sineiro foi cair num hospital onde devia terminar seus últimos amargurados dias. Bem perto se erguia a Catedral. Cada vez que os sinos da velha igreja se faziam ouvir, desciam grossas lágrimas pelas faces do sineiro. Notou a religiosa enfermeira o singular fenômeno, mas não obteve explicação alguma do pobre doente. A voz daquele grande sino, surgiam ao lado do sineiro os oito lustros e mais da sua vida aldeã; a saudosa terra se lhe antolhava através de lágrimas arrependidas... Chegou o dia de Natal. O sino da velha Catedral vibrou festivamente. Mais do que nunca se confrangeu (1) a alma do pobre doente. Quantas evocações! Nos anos anteriores, Natal era o dia mais alegre para o sineiro; nesse ano ao invés... Do fundo do coração pediu a Deus lhe levasse a alma para o Natal do Céu. Caiu no delírio. Pareceu-lhe estar na torre de sua aldeia a dar os últimos repiques festivos, momentos antes da missa do galo. Que prazer tão puro! Os sinos da Catedral continuavam a tocar e o enfermo, na exatidão febril da fantasia, cuidada ouvir os sinos que imaginariamente êle tangia. Crescia a onda de sons que desciam da Catedral, a agonia do velho sineiro precipitava-lhe a respiração e ele redobrava os esforços no vibrar os sinos fantásticos. O suor final porejou-lhe (2) na fronte e êle cuidada suar de repicar tanto, tanto... Pareceu-lhe então que sua querida tôrre se alongaa. Subindo, subindo sempre, penetrou no céu azul. Era a hora da Missa. Os sinos da Catedral calaram. O velho sineiro, ehxausto, cessou o repique para assistir à Missa... Já não delirava – ouviu entoar, em pleno Céu, o “Glória in excelsis Deo”. (3)

(1) Malogrado: sem resultado.
(2) Deteriorar-se: estragar-se.
(3) Pecúlio: soma de dinheiro acumulada pelo trabalho e economia. Cabedal.

(1) Confranger-se: angustiar-se.
(2) Porejar: sair pelos poros.
(3) Glória a Deus nas alturas.


HERÓI OBSCURO
“Pobre moço, quem diria?” “Como a gente se engana!” “Que matreiro, com aquela cara de sonso (1) heim?” “dizer que era religioso!”
Era o comentário do dia. Realmente, a surpresa foi geral, pois era nada menos que o caixa da fábrica, moço de confiança absoluta dos chefes, de procedimento inapontável e acusado de ter subtraído quantia grossa dos cofres do escritório. Bem que êle se quis defender, porém faltou-lhe sempre a voz. Mas defender-se como? Êle era o único que guardavas as chaves; no próprio bôlso dêle forma encontrados os envoltórios (2) dos pacotes das cédulas, ninguém podia ser apontado criminoso senão êle mesmo que entretanto recusava revelar o paradeiro do dinhiero.
Depois de um júri em que os juízes de fato unânimemente condenaram o infeliz caixa, êle, o pobre moço, entre lágrimas dos seus olhos e as dos seres mais queridos, na infâmia, partiu para o presídio distante. A despedida que o filho delinqüente (3) fez de sua extremecida mãe só pode ser descrita pelas lágrimas que não mais cessaram de correr dos olhos de ambos. O silêncio presidiu, esmagados, à cena dilacerante a que puseram têrmo os esbirros, (4) arrancando o filho dos braços maternos.
Do presídio, não chegaram notícias pelos anos números que dilataram o martírio do criminoso, não o da mãe, que sucumbiu depressa. Retirou-se e a família daquela terra em que a malsinara (1) um membro indigno. Nem ficava bem continuarem aliás pobres vítimas de um estouvado. Um irmão desse infeliz, que era operário da fábrica, estabeleceu-se longe daquele lugar de tristes recordações. Seus negócios prosperaram; mas não era feliz. Todos diziam que o irmão, tornando-se criminoso, tinha atraído castigos para a família inteira. Afinal um dia chegam notícias do presídio, as únicas do malfalado moço se obtiveram, mas eram notícias de sua morte. O guarda do encarcerado tinha a incumbência de arrancar dêle a confissão do crime, afim de se descobrir o destino dado ao dinheiro. Baldaram-se-lhe, (2) porém, todos os esforços. Morreu o moço obstinado no seu silêncio.
Quando essa notícia chegou aos ouvidos da família, enfermou gravemente o irmão do criminoso. Agravou-se-lhe o mal, e, não podendo mais falar, pediu então com insistentes acenos que o levassem... Levaram-no para o hospital. Êle, porém, continuava a insistir. Não era para ali. Como o não entendessem, fez supremo esforço em que se lhe foi a vida e exclamou: “Para o cárcere, sou eu o criminoso”.

(1) Malsinar: infamar.
(2) Baldar: ser inútil, vão.
(3) Cidade da Pérsia, sobre as ruínas de Eubátone.
Alveitar: indivíduo que, sem diploma de habilitação, trata de doenças de animais.

BEM FEITO
“Bem feito” é o grito de vingança que, por primeiro, aprende a criancinha. Infelizmente é muito precoce o sentimento vingativo e antes de saber articular qualquer palavra, já sabe a criança rugir como um leãozinho, quando se vê contrariada. Didi com três anos já sabia dizer “bem feito”. Quando a irmãzinha Celina, com quem sempre turrava (1) recebia um quinau, levava uma queda, quebrava a boneca, apanhava um pito – era infalível o “bem feito” de Didi. Um dia a irmãzinha caiu da escada. Ora, pouco antes os dois pequenos tinham chegado quase a vias de fato; (2) êle se julgara lesado em seus direitos de propriedade sôbre um pão de ló que ela, mambadeira (3) como ninguém tinha comido. Com a intervenção do pai, triunfara a filha. Quando, então, Didi a viu chorando após a queda, vingou-se com um solene “bem feito”. A pequerrucha foi para a cama, pois não tinha sido manha a choradeira com que assustou a mamãe. Contusões sérias e provavelmente lesões internas, em breve levaram a menina à beira da sepultura. Didi, é verdade, às vezes, brigava com a maninha, mas a amava doidamente. Quando percebeu a gravidade da doentinha, ficou aflito sobremodo. No dia seguinte foram chamá-lo para dar o último beijo à irmãzinha que, vestidinha de virgem, já estava no caixão, prestes a seguir para o cemitério... Pouco faltou que êle a não seguisse, tal foi a dor que sentiu o pequeno. Havia, porém, qualquer cousa de misterioso naquele penar infantil. Não eram as saudades naturais, não era a falta da companheira inseparável dos seus jogos inocentes. Didi chorava convulsamente meses e meses decorridos após a morte da irmã. Era – que podia adivinhá-lo? – era o remorso – o próprio remorso de Didi. Não lhe saía dos ouvidos aquela voz terrível “bem feito”que, num momento sinistro, lhe fugia dos lábios. Ela já ferida, mortalmente ferida, e êle a dizer-lhe “bem feito”... O vento que passava, o pássaro cantando, o silvo (1) das máquinas, tudo parecida repetir-lhe “bem feito”. Nuca mais viram cantarolar o pobre Diudi; nunc mais lhe ouviram as gargalhadas francas da infância.

* * *
Anos após, um jovem e fervoroso sacerdote, que renunciara no mundo a um brilhante futuro, subia os degraus do altar para rezar a sua primeira missa. Todos estranharam que o novo ministro de Deus quisesse (2) celebrar em paramentos (3) negros a sua primeira missa. Mas quem o assistia, ao altar, tudo entendeu quando, pedindo êle pelos mortos, o ouviu, por primeiro murmurar: ... minha irmã Celina”. (pp.26-27)


(1) Sonso: tolo.
(2) Envoltórios: invólucros, envelopes (galicismo esta última palavra).
(3) Delinqüente: criminoso.
(4) Esbirras: guardas, soldados.

(1) Silvo: apito.
(2) Quisesse: os tempos do verbo querer, derivado do pretérito perfeito, devem garfar-se com z.
(3) Paramentos: vestes que usa o sacerdote durante as cerimônias litúrgicas.


PELO MEU NETINHO
Subia a fábrica a olhos vistos.
Era uma azáfama (2) crescente porque o dia estipulado (2) no contrato, para a entrega do prédio, estava a chegar. O empreteiro, que já não era de boa catadura, (4) de franzindo o sobrolhos, à medida que os dias do prazo iam minguando. Os andaimes estavam altos. Sarilhos e roldanas (5) em bom número não bastavam para fornecer material aos pedreiros que, de quando em quando, gritavam: “argamassa”. Alguns serventes subiam depressa as escadas bambas, com baldes d’água, pilhas de tijolos, caixões com cimento, etc. Outros acionavam (6) os elevadores que também faziam subir material. Outros ainda por meio de pás planas de cabo longo, atiravam, para o andar superior, tijolos um a um. Entre estes últimos, havia um servente de pedreiro a quem anos não escasseavam. Apesar da idade, sujeitava-se àquele trabalho pesado, por amor de um netinho que lhe era o pensamento, a preocupação e o amor. Órfã de pais, a criancinha ficou aos cuidados do velho operário e por ela êle saiu do seu descanso e sujeitou-se “ao peso do dia e da canícula. (7)
Causava dó vê-lo manejar a pá, a fim de subir tijolos. Às vezes faltava-lhe de todo a energia dos músculos cansados, e o tijolo não podia ser colhido pelo companheiro de cima. Caía no chão e fazia-se em pedaços o tijolo. Pragueava o companheiro, outros zombavam dêle e o feitor ameaçava o pobre velho “pô-lo no ôlho da rua”. O operário esteve muitas vezes a pique de (1) revoltar-se, mas silenciava pensando no filho do seu filho, a quem não queria faltasse confôrto na vida. Um dia, era a ante-véspera do natal, choveram sobre o velho operário motejos (2) e repreensões amargas. O bom homem sentia-se sem fôrças físicas para o trabalho e sem fôrças morais para sofrer as humilhações: resolveu não voltar ao serviço. O feitor então lhe disse que não fosse procurar o salário, porque a multa pela retirada e pelos tijolos quebrados não deixava saldo em favor dêle. Ao chegar em casa, o pobre velho acabrunhado, recebeu nos braços, como de costume, o idolatrado netinho todo afagos e sorrisos. Pediu então ao “papai”, como lhe chamava (3) roupa nova e sapatos novos para ir ver o Menino Jesus no presépio. O velho escondeu as lágrimas que lhe saltaram do coração e, dissimulando, se retirou. A sós com o seu sofre, êle orou assim: “Virgem mãe, pelo amor do vosso filhinho, não me deixeis contristar ao meu: daí-me fôrça e eu volta ao trabalho, para ter com que comprar a roupinha do meu filho, que quer ir ver o vosso no presépio”. Na manhã do dia seguinte, o velho operário apresentou-se ao feitor. Quantas humilhações! Por fim aceitou-o de novo, mas com ordem de atirar os tijolos para um plano mais alto ainda. O velho não vacilou: faria tudo. Feitor e curiosos foram ver se o velho era capaz... Subiram os tijolos arremessados com rigor. “Depressa, depressa”gritavam. O velho arquejava trêmulo. Era o décimo tijolo. Um arranco ainda. O esfôrço foi violento. O tijolo subiu, mas o velho cambaleou e caiu supino. (4) Estava morto. (pp. 34-35)

(1) Fábrica: edifício em construção.
(2) Azáfama: grande atividade.
(3) Estipulado: agendado, combinado.
(4) Catadura: aparência.
(5) Sarilho: cilindro horizontal móvel, em volta do qual se roda uma corda: serve para levar fardos. Roldana: maquinaria com roda gigante, em cuja circunferência cavada passa uma corda.
(6) Acionar: pôr em movimento.
(7) Canícula: o ardor do sol.

(1) A pique: a ponto de.
(2) Motejos: insultos.
(3) Como lhe chamava ou o chamara.
(4) Cair supino: cair deitado de costas.


PRISMAS(2)
A tempestade havia prostrado uma árvore colossal que tinha acalentado (3) mais de um século em seus robustos braços. Era o orgulho da floresta e os mais feroses furacões se haviam desencadeado em vão contra a resistência das suas fibras e firmezas das suas raízes nas camadas do subsolo.
* * *
Passou por aí um botânico, numa excursão científico-recreativa e inerepou (4) o vendaval. Era muito grande o crime de roubar à flora tão belo espécime, criado pelos longos anos, no seio da floresta.
* * *
Passou depois um rico industrial, de mãos sujas de seiva (5) sob a maldição de todas as árvores. Votavam-lhe ódio mortal: para ele, aguçavam (1) seus espinhos, levantavam agressivos os seus ramos e confeccionavam, em secretos laboratórios, os mais violentos venenos. Ele sorriu de prazer, quando viu por terra a grande árvore, de membros estirados, nos estertores de uma agonia lenta. Sorriu, porque iria auferir(2) pigues (3) lucros de desgraça que vitimara o decano (4) das selvas.
* * *
Mais tarde chega um velho recoveiro (5) que, quando em quando, por aí passava por ser o único ponto transitável da floresta. Ao ver a enorme corpulência do vegetal que se lhe atravessara na passagem, embargando (6) a sua récua (7) de prosseguir a marcha, teve palavras de insultos para a pobre agonizante. Tentou desbravar (8) a passagem, cortando os ramos da árvore e lastimava não estarem secos ainda para, sem mais, reduzi-los a cinza.
* * *
À noite, chega à surdina (9) um grupo de selvagens. Havia-lhes chegado aos ouvidos a triste nova. Cobriu-se a tribo de luto. “Calamidade, calamidade – clamaram – que crime se cometeu aqui para tamanho castigo? (...) (pp. 34-36)
* * *
(2) Modos diferentes de encarar um mesmo fato.
(3) Acalentar: embalar, aconchegar ao peito. Aqui em sentido figurado.
(4) Inerepou: repreendeu severamente.
(5) Seiva: líquido nutritivo que circula nas diferentes partes dos vegetais.

(1) Aguçavam: adelguçar na ponta, afiar.
(2) Auferir: conseguir, colher.
(3) Pingues: gorgos.
(4) Decano: o mais antigo.
(5) Recoveiro: almmocreve.
(6) Embargar: impedir.
(7) Récua: coletivo de cavalgaduras.
(8) Desbravar: arrotear, preparar um terreno para a cultura.
(9) À surdina: locução adverbial: às escondidas.

FATOS DESPERCEBIDOS (1)
E’ maravilhosa a natureza na marcha incessante das cousas. Pena que os homens não lhe prestem atenção. As causas com seus variadíssimos efeitos, efeitos por seu turno, causas de novos efeitos, formam através dos tempos a rede admirável dos acontecimentos em séries entrelaçadas, intricadíssimas. Se acompanhássemos qualquer causa desde a produção do seu primeiro efeito e, através dos subseqüentes, (2) sem a perder um instante de vista, continuássemos a perseguí-la com a nossa atenção, êsse fio lougo de sucessos nos pasmaria. Ao lado daquela causa estudada, havia outra e mais outras, cada qual com seu fio de seqüências (3) – fios que, paralelos às vezes, embaraçados outras, formam precisamente a urdidura (4) admirável, a rede de fenômenos a que nos referimos. Que pena perderem-se assim, sem que o homem lhes tenha podido observar a realização, concatenação (5) com suas causas e efeitos próprios!
Para não ir às alturas do céu ou às entranhas da terra, junto de nós, em nós mesmos, há desses acontecimentos de que somos inconscientes. Lá no seio da floresta virgem, na furna (6) pavorosa de um despenhadeiro, entre árvores que viveram éculos e tombaram carcomidas (7) sem que homem algum lhes contemplasse a majestade, nesse recesso (8) escuro, um dia se batem duas feras. Um tigre e um leão medem suas fôrças numa luta feroz. Nenhum vence, nenhum é vencido. Morrem unidos na luta. Os Césares (1) apaixonados pelos espetáculos do Circo, teriam dado tesouros a quem lhes proporcionassem um espetáculo como êsse, que ninguém viu. No entanto, as ossadas fundidas pela raiva, como se foram de um só animal, aí estão demonstrando que a luta de morte se deu ali. Mais tarde dos estudiosos dos fósseis (2) poderão também ler nas camadas da terra, nessa História que tem seus documentos e provas, o fato sangrento da floresta.
Como se sente pequenino o homem, quando percebe que a natureza com suas leis admiráveis, sem lhe dar satisfação alguma, desenrola, através dos séculos, os fios maravilhosos dos seus acontecimentos! Às vezes lhe dá nas mãos da consideração a ponta de um desses fios, vem o homem recolher todo ele, mas parte-se o fio – e não se encontra a extremidade, que se perde no mistério. Filha de Deus, a natureza convence ao homem da sua mesquinhez e o convida a reconhecer a grandeza do Criador. (pp.101 e 102)

(1) Despercebidos e não desaparecidos.
(2) Subseqüente: seguinte.
(3) Seqüências: continuações.
(4) Urdidura trama, tecido.
(5) Concatenação: encadeamento, ligação.
(6) Furna: caverna.
(7) Carcomidas: escavadas, arruinadas, roídas.
(8) Recesso: recanto, escosso.


REFLEXÕES
Meia noite. Imerge, (1) no caso, a ponta de sua cauda o 31 de dezembro, e já assoma no oriente tenebroso, (2) o novo ano. Diz-se: é a roda do tempo. Mas não se diz bem: não é roda o tempo. Seu movimento não é circular. É uma ilusão supô-la. Não há rotação nos dias, nem nas estações. O que é rotativo sempre volta ao ponto de partida. Os anos se sucedem, os anos se impelem um ao outro; mas não há regresso. É absurdo supor um rio circular, pois o declive que lhe faz deslizarem as águas da fonte, é um dique à vota delas à origem. Para desconforto dos que desperdiçaram dias e anos, eles não tornarão a passar-lhe pelas mãos. O passado é o túmulo do tempo e não há exumá-lo (1) daí. Ondas que me beijastes ontem (2) as plantas dos pés, não voltareis mais a banhar estas margens que piso. E ainda quando volatizadas subísseis para as nuvens, afim de remontardes à fonte do vosso rio, ainda assim, das vossas colegas, as ondas do tempo, eu podia afirmar que não regressarão. Elas se parecem convosco, ondas do rio, mas nisto divergem muito.
Não haverá porém, aqui a flusão do viajante? Falo de quem viaja no combóio (3) e vê através de um postigo o desfilar das casas, das árvores, dos montes. Não podiam as ondas do tempo estar no caso desses montes que parecem correr? Somos nós que passamos ou é o tempo? Se o tempo em última análise é a mudança e nós mudamos sempre, já não vale a hipótese de estarmos parados à margem da corrente. Se nós, portanto, somos a verdadeira onda do rio, apelemos para ela, onda consciente, para ver se retrocedemos (4) já, um passo sequer. – Diz-se: a juventude passou; dir-se-ia melhor: eu era jovem, já não o sou. Moços que correis pela vida, depressa chegarei à velhice, se a morte vô-lo permitir. Não podeis retardar nem acelerar a vossa marcha, que é sempre a mesma, nas horas de tédio (5) e nas horas de prazer. Atentai bem para onde sois arrastados – nisto vai o segredo do vosso feliz destino. (pp. 111-112)

(1) Imergir: mergulhar, Antônimo: emergir.
(2) Tenebroso: adjetivo derivado da palavra latina tenebra – treva e o sufixo oso que indica abundância.

(1) Exumar: desenterrar. Derivado de ex e humus – terra.
(2) A grafia hontem em vez de ontem não se justifica etimologicamente.
(3) Combóio: trem.
(4) Retroceder: regressar.
(5) Tédio: aborrecimento.


FÉRIAS
Quando a acácia altiva se despe de sua roupagem verde, e encastoa (2) douro as extremidades dos seus ramos, as férias não tardam. Para o estudante o amarelecer florido da conhecida leguminosa, é como purpurescer risonho de um dia venturoso. As férias têm a fascinação (3) irresistível sôbre o coração imaginoso do estudante. Férias – reino encantado de visões fagueiras (4) e promessas sedutoras! Há, entretanto, muita insídia nesse mar de venturas. O educador experiente experimenta sentimentos inversos ao do educando, pelo aproximar-se desse tempo – parênteses aberto nos labores escolares, no qual não raro se aninha a desventura. A alma do jovem estudante é um vaso aberto, em que encontra fácil acolhida tudo quanto se intitule prazer. Gozar – é a voz freqüente, que faz pulsar forte o coração da juventude.
Mas para infelicidade geral o prazer é muitas vezes envenenado, e o coração inesperto que o sorve, suicida-se sem o saber.
Os estudos absorventes entretinham a alma sedenta de gozo como prazer sadio do cumprimento do dever, da aquisição da verdade, do devassamento de novos horizontes que a ciência rasga aos olhos dos seus cultores.
As férias fizeram secar essas fontes de gozo puro. Descansa o espírito, mas o coração não quer férias. Ei-lo à procura de outros prazeres, menos árduos de fruir. As diversões ou passatempos voam ao encontro dele. Mas, pobre coração, esse prazer fácil, sedutor, ilude tanto.
Quantas vezes não morre o coração, onde julgava encontrar felicidade! Morre, sim, porque perdeu a vida seus nobres menis, seus sentimentos mais belos, uma virtude nutrida com tantos esforços e renúncias. E como é triste o ruir de uma alma. Férias cruéis essas, que ocasionam tão desastrados desmoronamentos! Descanso fatal o que degenerou em ruína! Uma grande porta fechará o providente estudante aos males que lhe insidem a alma se se precaver das chamadas “diversões”, desde quando não sejam informadas pelos princípios cristãos. (pp. 121-122)

(2) Encastoar: enganar, embutir.
(3) Fascinação: atração.
(4) Fagueiras: alegres, prazenteiras


DISCORDÂNCIAS
Na minha terra todos me julgavam um sábio; aqui, estou no rol dos ignorantes. Meus conterrâneos eram topeiras, aqui todos são águias.


Teimavam dois irmãozinhos, numa acalorada discussão. Um sustentava que a concha é convexa, o outro afirmava ser côncava.

Na literatura dos morcegos, todas as poesias melancólicas inspiram-se na aurora; os poema alegre e festivos sempre falam do ocaso.


Pedro insiste em que Londres fica muito longe. João não concorda: parece-lhe até muito perto.
Este é de York; (1) aquele de Nova York. (p.271)

(1)York: cidade da Inglaterra, à margem do Ouse.


REFERÊNCIA
TABORDA, Radagasio. Crestomatia: excerptos escolhidos em prosa e verso – Dos melhores escritores brasileiros e portugueses. 6. ed. Edição da Livraria do Globo: Porto Alegre, 1936.

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